Dois anos já se passaram desde a partida de Serge. Um acidente causado por seres criminosos nos causou uma grande perda, deixando aos amigos enorme tristeza, revolta, incredulidade.
O funeral ainda está nítido em minha mente. Presente ingrato e cruel que o destino reservou-lhe: faleceu no dia de seu aniversário. Lembro da tristeza dos amigos, da dor de dona Sandra, e principalmente da minha revolta por ter perdido um dos melhores amigos que tive no tênis de mesa.
O fato é que praticamente parei de jogar. Deixei de ir para o Ateme, que até então, era praticamente meu segundo lar, meu santuário. Para mim, o tênis de mesa perdeu totalmente o sentido desde então. Ir para o Ateme sem Serge é como ir a um teatro sem atores no palco.
Desnecessário falar sobre seu currículo: Serge Mimura, ex-técnico da seleção brasileira, técnico da equipe vice-campeã paulista várias vezes, mentor do Cazuo, Mariany e de outros jogadores talentosos, “n” títulos e troféus…
E como pessoa, como era ele? Vamos ver: acho que conheci o Serge no meio de 1999. Tinha parado de frequentar a mesa da faculdade e um colega me chamou para treinar no Ateme. A primeira vez que vi o Serge pensei: caramba, esse gordão sabe mesmo jogar tênis de mesa?
De cara, me botou para jogar com a molecada (Mariany Nonaka e Lucas Tatani, que na época eram crianças ainda). Desnecessário dizer que perdi, apesar do pino que normalmente dificultava até jogadores experientes. Depois ele mesmo jogou comigo. Na época o set ainda terminava com 21 pontos. Terminei os dois sets sem nenhum ponto. Para me sacanear mais ainda, me botou para jogar com o Cazuo, que já era um talento e tanto. Mais dois sets zerados e me senti ainda mais lesado…
Naquele dia aprendi várias coisas: não julgar o livro pela capa, não achar que sabe de tudo, não confiar demais no pino e ser humilde. Levei o treino a sério: um mês depois, consegui minha primeira medalha num evento que rolou no Anhaguera.
No início do ano seguinte, ele me disse: “vai ter que competir como federado”. Eu pensei: “fdeu". A estréia foi um desastre. Perdi muitos pontos pois meu saque era totalmente irregular: não soltava a bola. Nem consegui sair da chave. Serge ficou puto, mas gritava rindo: "Pta que priu, seu pangaré do crlho! Vamos treinar essa mrda de saque e ataque a partir da segunda-feira!!!”.
Durante os meses seguintes treinava de segunda a sábado. Como sou espírito de porco, nem sempre treinava corretamente. Obviamente tomava uns esporros do Serge. Mas graças a ele e aos outros colegas, consegui melhorar consideravelmente. Não éramos de ferro: frequentemente íamos comer ou beber algo após os treinos, e nessas ocasiões soltávamos os verbos, metíamos bronca em um monte de gente, sacaneávamos uns aos outros. Bons tempos, muito divertido mesmo.
Um dia desses, ele me chamou: “Marcão, você vai jogar na principal no torneio de equipes geral do Paulista. O time somos eu, Marola, você e Barata (Felipe Morita). Vamos ganhar!”. Em minha mente: “misericórdia, me f*di de novo”.
Dia do torneio: pauleira total. Em um determinado momento, vacilei e me arrancaram um set. Desta vez Serge chegou e falou tranquilamente: “Marcão, vamos lá! Confia. Você sabe o que fazer”. Sem mais nenhuma instrução nem nada. Terminamos o torneio como vice-campeão.
Mas a colocação não era nada se comparado com a confiança que ele depositou em mim. O tipo de confiança alheia que gera autoconfiança nos outros. Serge era esse tipo de pessoa. Tinha esse dom. Todos seus alunos receberam isso dele, e carregamos isso em nosso dia a dia até hoje.
Serge disputava todas as bolas e vibrava em todos os pontos que marcava, mesmo quando a derrota parecia iminente. Apesar daquele tamanho todo, atacava o tempo todo, de forehand, de backhand. Chamava para o jogo franco o tempo todo. Nunca fugia dos desafios, tanto dentro quanto fora da mesa. Conto com os dedos de uma mão quantas vezes já ganhei dele. Era difícil superar seu jogo, e mais difícil ainda superar seu ânimo.
Serge era poucos meses mais novo que eu, mas se comportava como um molecão, daqueles bem pentelhos por cima. Era meu treinador mas também amigo. Sabia impôr respeito sem ser autoritário. Tratava todos como igual. Nunca fez faculdade e se orgulhava disso, aliás, era muito engraçado quando ele dizia isso. Soltava palavrão o tempo todo, vivia no meio da molecada, parece que nunca cresceu. Peter Pan. Era vidrado em novidades, um geek. Sua animosidade era constante, mas as risadas marotas também eram frequentes.
Ele nunca mudou, nem mesmo quando virou técnico da seleção brasileira. Essa foi sua maior virtude. Humilde nunca foi, mas também não ficou mais arrogante. Não dava voltas, falava o que pensava, ia sempre direto ao ponto. Não fugia das discussões, mas respeitava quando os outros estavam com a razão.
Serge vivia para o tênis de mesa. Ele respirava, acordava, dormia e sonhava com a raquete. Sempre dava um jeito de conseguir os vídeos dos torneios internacionais mais recentes, assistia, analisava, e já arriscava em colocar as novidades nos treinos. Quando os sets de 11 pontos ainda eram boatos, já treinávamos nesse formato. Dois meses antes da bola de 40mm se tornar oficial no Brasil, já estávamos treinando com ela. Testava todas as borrachas, colas, raquetes. Pesquisava sobre o assunto o tempo todo. Um fanático que realmente amava o tênis de mesa.
Em todos esse tempo nunca vi o gordão deprimido. Nem mesmo quando levou tiro no seu braço esquerdo. Canhoto nato, ele treinou com afinco o braço direito e pouco tempo depois, já ganhava de alguns dos alunos mais fortes. Em matéria de força de vontade, poucos o superavam. Nunca se dava por vencido. Nunca mesmo.
É assim que lembro deste grande amigo e acredito que é dessa forma que ele gostaria de ser lembrado. Hoje (05/10) ia ser o aniversário dele. Se ainda estivesse presente, tenho certeza que estaríamos comemorando em alguma churrascaria, contando histórias e piadas infames. Isso não será mais possível, e sendo assim, escrever foi a forma que encontrei para homenagea-lo.